Metropolis Parte 2: Cenas de uma Memória

Obra.



Essa é uma história de busca por compreensão. Não de busca por sentido, mas por fatos ocorridos e mal resolvidos. Peças que se encaixam mal de um tabuleiro adquirido inteiro.

 

Nicholas iniciou essa história em um consultório de Hipnoterapia. Buscando respostas para a sua ansiedade, se refugiando na promessa de que a regressão rumo as suas vidas passadas o traria paz – já que em pouco resultavam os remédios que tomava.

 

O hipnoterapeuta garantira a Nicholas que o procedimento era seguro, talvez intenso, longo, dramático, esfuziante, mas resoluto e esclarecedor; e que, se também fosse nauseante ou vertiginoso demais, bastava que abrisse os seus olhos para retornar à vida presente.

 

As incontáveis sessões de hipnose o levaram a assistir cenas de outra vida. Sempre via uma mulher chamada Victoria, num quarto datado e com o qual se sentiu profundamente familiarizado. Nicholas enxergou os Estados Unidos, dos idos de 1928 – duas gerações antes da sua, uma vida antes, talvez. As cenas perpassavam sob o seu olhar como um Déjà vu. Revelavam uma casa, com escadas que sempre o levavam a um quarto, onde via um espelho que o refletia como uma menina, uma criança. A regressão o levava sempre até Victoria, sua encarnação passada, talvez mais recente, diante de um espelho, com um semblante melancólico e distante...





Nicholas:

_ Jovem Victoria, por que não me diz o motivo de estar aqui?

 

De cada sessão Nicholas saía mais angustiado e as questões o assombravam: antigas e vívidas memórias das quais desconhecia as origens e os desfechos. Havia algo mais importante do que a sua própria angústia cotidiana para desvendar, havia no seu espírito um terror passado e irresoluto.

 

Nicholas:

_Nos olhos dela eu sinto uma história nunca contada. Aquele olhar lúrido esconde alguma coisa que dilacera a sua alma. Que tragédia foi esta que me assombra e a faz chegar até mim?

 

“Tudo o que fazemos ressoa pela eternidade

O que temos sido são nossas próprias ondas

Tudo o que hoje aprendemos

Ressoa pelo tempo e pelo espaço”

 

Nicholas leu as manchetes nas bancas de jornais entre as suas regressões, e viu que Victoria protagonizou uma tragédia amorosa. De quando era muito jovem, de quando amava o seu algoz. Para ele as imagens estavam dispersas, obscuras, veladas e desconexas. Nos seus próprios sonhos e em suas lembranças, claras como as folhas de jiboia que guardou em suas mãos, as matérias diziam:

 

“Uma jovem foi assassinada!

Houve tiroteio e confusão em Echo's Hill

O assassino morreu

E o suicídio é evidente

Uma testemunha ouviu um som apavorante

Correu e encontrou uma jovem morta

Caída no chão

Em pé e ao lado dela estava um homem

Nervoso, tremendo, com uma arma na mão

A testemunha, confusa e com medo, deixou um bilhete, contando o que testemunhou

E após gritar em desespero

A testemunha correu para buscar socorro, em vão

O assassino se matou

Seu corpo caiu ao lado daquela pobre jovem

Um triste fim para três almas, em um caso de crime passional”

 

Nicholas descobriu que Victoria fora a esposa de Julian, um renomado político, membro da aristocracia norteamericana, egocêntrico, alcoólatra inveterado, viciado em jogos e em cocaína, ávido pelos novos prazeres sintetizados que o ano prometia. Um sujeito para o qual tudo fora posto em nome da sua carreira, tudo acontecia para o seu próprio projeto de poder e das suas realizações para a sociedade de Echo’s Hill de 1928, – Julian possuía uma ânsia pelo seu futuro prometido só calçada pelo amor que sentia por Victoria, e pelo vício que estocava todas as suas frustrações. Seria Prefeito e seria, depois, Governador...

 

Julien fora o amor da vida de Victoria, com quem perdeu sua inocência e escolheu dividir a juventude. Com quem queria ter filhos e sonhava com um futuro no qual ele se voltaria, novamente, para o lar, de volta aos seus braços – onde o amor residiria pleno. Victoria fora dessas que se despendem, que abdicam de toda a vida pelo relacionamento amoroso. E embora se tornasse outra coisa abaixo de homem em meio aos vícios, depois dos jogos, ela sempre reconhecia o coração do Julien pelo qual se apaixonou.

 

Com o tempo Nicholas deixou de revisitar a história de Victoria como um expectador. E a cada nova sessão enxergava os acontecimentos mais vívidos, como se sucedessem no seu presente, diante dos seus próprios olhos. Alguns anos antes da tragédia anunciada, foi no irmão mais novo de Julian: Edward, que Victoria encontrou amparo, onde buscou compreensão para a situação do casal – pelo olhar de quem mais o conhecia. Victoria buscou socorro para a angústia de amar um homem perdido no próprio ego e nas drogas que o desfiguravam ao longo dos anos. E foi buscando caminhos para manter a relação – seu sonho de vida, foi buscando refúgio, que confundiu o acolhimento com o desejo, os plácidos braços do irmão se tornavam ganchos, até se entregar ao inusitado, até se ter de vez com Edward. E trair Julian à luz do seu próprio ego, à luz dos seus próprios os vícios.

 

Com Edward havia energia. Havia vontade, havia desejo! E quando faltasse alguma coisa surgia a outra. Havia uma paixão inexplicável. Uma promessa impensada de solução para as dores de um futuro que aos poucos se perdia. O desejo de Victoria por Edward sucedia cada vez mais como as drogas que Julian consumia, embora nunca cessasse o incômodo, nunca cessava a vontade – apenas no dia seguinte, quando dava lugar à vergonha. Julien, por sua vez, chegou a pedir o perdão de Victoria, dizia que largaria os jogos, as drogas e todos os vícios por sua salvação: pelo amor da sua vida. Victoria estava decidida:

 

_Me disseram que há um novo amor que nasce para cada um que já morreu.





Edward era um ávido jovem que desejava Victoria como um neófito que só conhecia as mulheres dos cabarés. E se culpava por trair o seu próprio irmão. Sempre que esteve com Victoria sentiu que aquilo era proibido, que se perdera num desejo impossível: e todas as vezes eram como se fossem a última.

 

Edward:

_Me deitei com a esposa do meu irmão. Não sou mais do que um verme! Mas Victoria é tão linda, suas curvas são tão bem feitas... Ela não merece esse desprezo! Não merece ser deixada de lado pelos vícios e a insensatez dele. Ele se tornou um canalha infiel! Mas ela reluta. Sempre reluta! Quero estar com ela novamente. Quero abrir os seus olhos. Eu a amo!

Por uma última vez

Nós nos deitaremos hoje;

Por uma última vez,

Até desaparecermos.

Nós lentamente sumiremos.

 

Anos se passaram desta relação descabida e velada. Mas Victoria ainda sonhava com Julien; não o Julien desfigurado pelos vícios, mas com aquele que a declamava poesias; com o homem inteiro, afastado da morte; com aquele antigo aroma que o álcool ofuscou; aquela notável presença até nos salões mais nobres, que o fez ambicioso e prepotente.

 

Na quinta-feira antes do fatídico dia da tragédia fatal, Victoria acordou ao lado daquele antigo Julien, chorando, pedindo o seu perdão e socorro:

 

_Hoje, eu sei como é perder a razão de viver. Talvez eu tenha perdido você para mim mesmo, para os meus próprios demônios. Mas lhe peço uma última chance. Eu sei ser melhor em você, Victoria! Não existe um futuro sem você ao meu lado. Você é a minha musa e o sentido da minha existência. Será melhor morrer, se não houver mais o teu amor e o teu perdão. Não danço com a morte, Victoria, danço com a vida, danço contigo. E a única dança eterna é o meu amor por você!

 

Da angustiada mente de Victoria Nicholas acordou. Alguns dias se passaram até que retornasse para ouvir do seu Hipnoterapeuta o mesmo que incontáveis vezes antes:

 

_ "Feche seus olhos e comece a relaxar. Respire fundo, e expire devagar. Concentre-se na sua respiração. Com cada expiração, você fica mais relaxado. Imagine uma luz branca brilhante a sua frente. Foque-se nessa luz enquanto ela flui pelo seu corpo. Permita-se viajar enquanto você entra cada vez mais fundo em um estado mental mais relaxado.

Agora enquanto eu contar de 10 até 1 você se sentirá mais tranquilo e calmo. Dez, nove, oito, sete, seis... você entrará em um lugar seguro, onde nada poderá te machucar. Cinco, quatro, três, dois... se a qualquer momento quiser voltar, tudo o que deve fazer é:

 Abrir os seus olhos!

Um..."

 

Nicholas:

__Não faz o menor sentido essa tragédia fatal. Há tantas evidências de um crime passional, mas as peças não se encaixam perfeitamente. Embora eu ouça os rumores do rastro de ambição de um homem confuso, viciado e perdido, Victoria feriu tanto assim essa alma? Eu não lhe disse “Adeus”! Sei que não disse...

 

Nicholas regrediu até a cena do crime para a revelação final. Viu Edward dizendo à Victoria com uma arma apontada para o seu peito, antes de alvejá-la com uma bala:

 

_Abra os seus olhos, Victoria!

 

E no chão aos suspiros finais jaziam Victoria e Julian. Havia um ódio irrefreável no semblante de Edward, misturado ao assombro, ao pavor pelo que acabara de fazer, misturado às consequências de um ataque violento em resposta a nova chance que Victoria dera ao seu primeiro amor. Houve reconciliação e houve um rancor intenso em contrapartida.

Em meio à confusão Edward tentou mirabolar um plano onde se tornaria a testemunha do assassinato e não o assassino. Calculou que ninguém soubesse do perdão de Victoria, mas que saberiam da traição dela com ele. Redigiu um bilhete, mas logo o amassou e jogou ao chão. Seu rosto estava desfigurado. Seus olhos não mais paravam em lugar algum. Estava completamente voltado para dentro de si.

 

_É sexta-feira à noite. O sangue ainda está em minhas mãos. Como ela me deixaria agora, por aquele homem viciado e mal-agradecido? Jamais aceitaria! Sou o único sobrevivente. Mas a minha vida se foi com a do meu irmão e a da minha amada. Não haveria redenção para a minha alma.

 

Antes do suicídio, Edward executou uma artimanha na qual o tiro o faria agonizar na poça do próprio sangue, pondo a arma nas mãos de Julien. Havia apenas um limite que seus pais ensinaram sob quaisquer circunstâncias: antes o julgamento da sua alma do que o julgamento da sua reputação.

 

Antes de abrir os olhos Nicholas vislumbrou o pálido olhar de Victoria e ouviu um sussurro:

 

_Este sentimento dentro de mim

Finalmente achei a saída, finalmente estou livre

Não estou mais dividida

Aprendi sobre a minha vida através de você

Nós nos encontraremos novamente algum dia, em breve

 

Nicholas encerrou a última sessão com os fatos finalmente solucionados. Ele havia encaixado as peças tortas do tabuleiro que adquiriu inteiro. Agradeceu, pagou pela última sessão e sem muita cerimônia foi para casa livre. O alento que agora dominava o seu espírito convivia com um mal-estar, um certo sentimento de culpa, com o qual Victoria partiu.

Nicholas dirigiu tranquilo até o seu lar. E embora ainda ouvisse a chuva daquela noite de sexta-feira, de 1928, estava noutro tempo e lugar, em uma plácida noite de verão na qual apenas os insetos faziam coro. Ao adentrar o recinto de sua paz, desta vez, mais real do que nunca, repetiu o hábito de ligar o rádio; e começou a ouvir o noticiário, que mencionava uma tragédia envolvendo um membro da aristocracia norteamericana.

Ele ignorou a infeliz coincidência, derramou o seu melhor whisky no copo, relaxou sobre sua melhor poltrona e ligou sua vitrola com seu disco preferido. A porta da cozinha abriu à sua frente e dela subitamente revelou-se o hipnoterapeuta com uma arma apontada para a sua testa:

 

_Abra os seus olhos, Nicholas!


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