Sonho de Princesa -
À esquerda "Os Comedores de Batatas" de Van Gogh, à direita "O Almoço dos Barqueiros de Pierre-Auguste Renoir
Mas, um dia Marta desconfiou de tudo. Marta pesquisou e descobriu que os manuais mudam
conforme o tempo, conforme o contexto, conforme a geografia; a etiqueta
e a nobreza não eram valores absolutos, ela descobriu que poderia inferir que
cada povo, em cada época, possuia códigos próprios dos quais se depreendem os
manuais.
_Vivi na loucura?
Marta descobriu também que “etiqueta” não era um termo usado
apenas para as relações sociais da alta classe, era um termo usado para definir
a harmonia das relações humanas entre quaisquer classes, tinha algo a ver com respeito
e a cordialidade, mas que não era transversal – cada classe, cada gênero, cada
bolha com o seu próprio código - porque os seres humanos costumam se estranhar. Mas Marta descobriu que era um termo profundamente
atrelado à moral; e este foi o seu ponto de virada. Marta estudou e descobriu
que a maioria dos manuais sobre etiqueta tinham como público alvo as mulheres...
"Os cuidados com o corpo;
A “maquillage” e seus preparos;
Graça e encanto;
Casamento e etiqueta..."
E descobriu mais profundamente que a maioria dos manuais era
voltada às mulheres brancas de certa classe média ocidental, que definiam as suas
prioridades e funções, como formas naturais de comportamento. Descobriu também
que dos manuais orientais as diferenças eram praticamente acessórias ou, com
muita condescendência: culturais. Ela iniciou um olhar cínico sobre as regras
de civilidade. As regras criavam entre os homens as condições de um relacionamento
agradável, lícito e, cada vez mais, confortável às reforçadas exigências da
religião. Os manuais diziam:
“Toda mulher que aspira ao encanto dispensa particular
atenção aos cabelos, olhos, rosto, braços e mãos, pois que estes se encontram sempre
em evidencia. Mas, ao mesmo tempo, não ignora, em hipótese alguma, os demais
cuidados devidos ao corpo talhe e o porte, a boca e os dentes, conquanto
estejam menos expostos aos olhos.”
Certo dia, num jantar, Marta sentou-se à mesa, nas condições perfeitas
para realizar o seu sonho de princesa, em um dos grandes salões da sociedade, e refletiu:
“_Veja este ambiente! Macacos que se comportam como porcos que
chafurdam à mesa, comendo peixes, verduras e legumes combinados e decorados, à
prestação para não parecerem ávidos como os outros animais. Mas não há manuais,
não há códigos, não há manto, não há vestimentas, não há caprichos que à minha
vista lhe façam diferentes de qualquer outro ser neste planeta. Eles deglutem outros
animais e um pouco os vegetais – as mulheres aqui deglutem mais os vegetais. A
energia do jantar os sorve com a vontade de detratar aqueles que têm menos condições que
eles: falam mal dos pobres, falam mal das mulheres, de outras etnias, falam mal dos
sem-saúde, falam mal daqueles que não foram educados como eles. Todo assunto
gira em torno do próprio ego, da própria classe.”
E este foi o primeiro dia de Marta diante da vida adulta e real, sem falsificações.
_Pau no cu da etiqueta!
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