A estética do Sim - Considerações sobre o Jovem Nietzsche


Ó tu que com o dardo de flama
Partes o gelo de minha alma,
Para que ela se lance frenemente
Ao mar de sua suprema esperança:
Sempre mais clara e sã,
Livre na lei mais amorosa
Assim exalta teus milagres,
Belíssimo Janeiro
.”







Há, pelo menos, duas fases evidentes na vida de Nietzsche. E é também evidente que, neste caso, vida e obra são uma só coisa. Aí, a “abnegação” não possui valor algum, os grandes problemas requerem um amor à sua altura, somente o filósofo que se coloca pessoalmente ante sua filosofia é capaz de galgar raras alturas. A “impessoalidade” na filosofia é coisa para “fracotes com sangue de barata”. Pode-ser dizer então que existiram dois “nietzsches”, que talvez fossem como distintos necessários: aquele do agradecido e esbanjado Sim, e o outro, do Não transformador.

Já em O Nascimento da Tragédia, ele determinava que somente como fenômeno estético a existência se justificaria. É comum haver um certo distanciamento desta obra para com as outras – ela não é aforística, e possui certas características acadêmicas formais. Mas, me parece claro que em uma outra obra, certamente da mesma fase, o mesmo plano de fundo, ou melhor, a mesma determinação tenha se desenvolvido: falo de A Gaia Ciência. Folheando parcialmente esta obra, talvez já seja possível notar, quase como evidente, que o próprio título não enuncie mais do que a justificativa da existência como fenômeno estético.

A noção provençal do gai saber é ampliada em significação. O Nietzsche que sofreu intensas dores e exprime a convalescença de alguém que vê de volta o grande vigor, é também, e necessariamente, a filosofia que aponta à uma ciência que alegremente se impõe limites no tocante aos problemas do mundo, para não perder de vista a preservação e a afirmação da existência. Esta é a maior dívida e necessidade que Nietzsche tem para com a arte, principalmente àquela da Grécia Antiga – os gregos adoravam as formas e as ilusões, e, embora tenham contribuído enormemente para o progresso científico, nunca foram agressivos, excessivos, no que diz respeito às técnicas de domínio da natureza.

A Gaia Ciência é uma obra de intenso louvor à arte. Nota-se desde o Prelúdio em rimas alemãs e as Canções do príncipe Vogelfrei, até em aforismos como: Nós, artistas, Arte e natureza, Da origem da poesia, Da vaidade dos artistas, e, principalmente, Nossa derradeira gratidão para com a arte. É aqui que Nietzsche é mais direto. Se não tivéssemos criado o que ele chama de “espécie de culto do não-verdadeiro”, a percepção que agora a ciência é capaz de nos fornecer (percepção da inverdade) levaria à náusea e suicídios coletivos. E para rememorar O Nascimento da Tragédia, ele diz:

“(...) Como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são dados olhos e mãos, e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno.” (GC, § 107)

É através do riso e do choro, alcançados somente por quem se olha de “cima e de longe e, de uma artística distância”, que é possível “pairar acima das coisas”.

O primeiro aforismo de A Gaia Ciência levanta um caso em que a própria natureza humana mudou. Na “lei do fluxo e refluxo” que tornou o homem “um animal fantástico”: o aparecimento renovado dos “mestres da finalidade da existência” (o que ele chama de tempo da tragédia, mas em um sentido diferente da tragédia ática, grega) e sua supressão através do “riso, a razão e a natureza” (o tempo da comédia).

Nietzsche “culpabiliza” um instinto por isso. O “mais antigo, mais forte, mais inexorável, mais insuperável”, instinto: a conservação da espécie (“a essência da linhagem e rebanho que somos”).

Não apenas o riso e a gaia sabedoria, mas também o trágico e sua sublime desrazão fazem parte dos meios e requisitos para a conservação da espécie” (GC, § 1)

Não é por menos, pois se por um momento nos colocássemos diante da possibilidade de um mundo assim cômico, a espécie não seria uma objeção, a vida não seria uma objeção, mas antes seriam fenômenos estéticos, e, como tais, poderiam se auto-reivindicar. Por outro lado, um mundo totalmente trágico (nesse sentido), um mundo sério, de posse daqueles “mestres da finalidade da existência”, em que:

“... a estirpe humana decretará: 'Existe algo de que não se pode mais rir em absoluto!'” (GC, § 1)

seria um mundo pálido, que certamente faria a humanidade definhar por falta de força - “na areia”, para utilizar outra expressão de Nietzsche.

Me parece claro que Nietzsche também seja o filósofo do riso, da gaia sabedoria, que talvez dissesse: “Antes, definhemos no fogo do que na areia.”. Pelo menos, o Nietzsche do Sim. Isto ainda causa certo alvoroço de anti-nietzschianos que chamam sua filosofia de anestesiamento estético, chamam Nietzsche de promotor de uma espécie de “homem-purpurina” - deslocado da complexa e pesada realidade. Pois bem, eu me pergunto: onde uma “estética” assim começa a descolar-se da realidade?



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