Revolução Francesa: A Pedra no Sapato de Nietzsche




A Revolução Francesa ocupou grande parte das obras da maioria dos pensadores dos séculos XVIII e XIX. Nietzsche (1844 – 1900) preferiu praticamente ignorá-la, quase sempre rebaixando-a como acaso infeliz, puro ressentimento de classes inferiores, “inveja burguesa da noblesse, ou seja, de esprit e élégance, como expressão de uma sociedade cortesã, cavalheiresca, antiga, segura de si.”. Até mesmo na música alemã, Nietzsche via os ecos da inveja e ressentimento impregnados em toda Europa após a Revolução:

“(...) Considere-se, por fim, se o desprezo da melodia e enfraquecimento do sentido melódico, hoje cada vez maior entre os alemães, não pode ser entendido como grosseria democrática e efeito posterior da Revolução. Pois a melodia tem um tão claro deleite com as regras e uma tal aversão a tudo o que se acha em evolução, que é informe e arbitrário, que soa como algo da velha ordem das coisas européias e uma atração e regressão para esta.” (A Gaia Ciência, § 103)

Para ele, acima de tudo, a Revolução Francesa, que precedeu uma série de outras em toda a Europa (o que veio muito tempo depois ser a Primavera dos Povos), foi mais uma vitória do cristianismo sobre a moral nobre, guerreira, com a democracia, a igualdade de direitos, etc. Daí, talvez em nada lhe interessasse adentrá-la, pois o que a gerou já teria sido, muito antes, bem explicado na vitória de Judéia sobre Roma. Segundo ele:

“(...) os romanos eram os fortes e nobres, como jamais existiram mais fortes e nobres, e nem foram sonhados sequer (...). Os judeus, ao contrário, foram o povo sacerdotal do ressentimento par excellence, possuído de um gênio moral popular absolutamente sem igual: basta comparar os judeus com outros povos similarmente dotados, como os chineses ou os alemães, para sentir o que é de primeira e o que é de quinta ordem. (...) Em um sentido até mais profundo e decisivo, Judéia conquistou com a Revolução Francesa mais uma vitória sobre o ideal clássico: a última nobreza política que havia na Europa, a da França dos séculos XVII e XVIII, pereceu sobre os instintos populares do ressentimento nunca se ouviu na terra júbilo maior, nem entusiasmo mais estridente!”

Não é novidade a apreciação de Nietzsche pelas aristocracias, principalmente àquelas da Grécia e Roma Antiga. Numa crítica indireta à rédea frouxa dos capitalistas de sua época, e em completa aversão ao socialismo, ele diz:

“(...) Aos industriais e grandes negociantes faltaram provavelmente, até agora, todas as formas e insígnias da raça mais elevada, que tornaram interessantes as pessoas; tivessem eles no olhar e nos gestos a nobreza da aristocracia de berço, talvez não existisse socialismo das massas. Pois estas, no fundo, acham-se prontas para toda espécie de escravidão, desde que os mais elevados constantemente se legitimem como tais, como nascidos para mandar – através das maneiras nobres! O homem mais vulgar sente que a nobreza não se improvisa, que nela se reverencia o fruto de longos períodos de tempo – mas a ausência de maneiras elevadas e a notória vulgaridade dos industriais de mãos vermelhas e gordas fazem-no pensar que apenas o acaso e a sorte puseram um acima do outro: muito bem, resolve ele consigo, experimentemos nós o acaso e a sorte! Lancemos os dados! – e começa o socialismo.” (A Gaia Ciência, § 40)

Pois bem, mas o que sucedeu na época anterior à Revolução Francesa? Independente das causas dadas por diferentes historiadores, que podem passar por desde uma conspiração jacobina, cujas principais personagens eram Voltaire, d'Alembert, Diderot e o rei Frederico II, na visão de Barruel, autor de Mémoires pour servir à l' histoire du jacobinisme (1798):

“(...) nesta Revolução Francesa, tudo, até os crimes mais horríveis, tudo foi previsto, meditado, combinado, resolvido e determinado; foi tudo o efeito da maior perfidia, visto que tudo foi preparado e conduzido por homens que eram os únicos a conhecer a fio as conspirações urdidas durante muito tempo em sociedades secretas.”;

até a necessidade histórica do desenvolvimento das nações européias. Segundo Barnave:

Seria vão tentar fazer uma idéia correta da grande revolução que acaba de agitar a França considerando-a de uma maneira isolada, separando-a da história dos impérios que nos rodeiam e dos séculos que nos precederam (...) É ao contemplar o movimento geral que, desde o feudalismo até os nossos dias, conduz os governantes europeus a mudar sucessivamente de forma, que perceberemos claramente o ponto a que chegamos e as causas gerais que a eles nos conduziram.”

Um ou dois fatos são interessantes para se questionar Nietzsche: o primeiro foi a própria decadência da nobreza e da aristocracia francesas. Apesar do rápido desenvolvimento econômico, a França, pouco antes da Revolução, passava por um intenso conflito de classes, com a ascensão da burguesia, e o crescente aumento das taxas de impostos. O então rei Luís XVI se saia com soluções nefastas. De fraca personalidade, em lugar de apoiar-se, recuando aqui e ali, na burguesia, ele a repelia, favorecendo a aristocracia que era impotente. Barnave, por exemplo, ainda diz:

Se havia um meio de impedir a explosão do poder popular, era o de associar ao governo o terceiro estado (burguesia e camponeses), tal como estava constituído, e de lhe abrir todas as barreiras; fez-se precisamente o contrário: como um governo corrompido tinha abatido a aristocracia, pensou-se que um governo paternalista a devia restabelecer; reconvocaram-se os parlamentos, devolveram-se todos os privilégios de nascimento, excluiu-se cada vez mais o terceiro estado das carreiras militares, puseram-se as leis em oposição com os costumes e com o andamento natural das coisas, fez-se tudo para excitar a inveja de uma classe e para exaltar as pretensões da outra; fez-se com que o terceiro estado se habituasse a ver no trono uma força inimiga que só ele podia manter ou destruir, devolveu-se à aristocracia aquela embriaguez que, quando mais tarde se quis refreá-la, a levou a provocar uma revolução de que veio a ser vítima.”

A decadência do feudalismo e de todo o obscurantismo das monarquias se deu também por conta de um processo histórico de desenvolvimento, de industrialização, de avanço de novas forças produtivas, de acúmulo do conhecimento. Então, seria prudente negar isto, ou reduzir a uma espécie de consolidação moral (do cristianismo)? Será que Nietzsche preferiria aquela aristocracia decadente em detrimento de indivíduos que constroem sua liberdade no interior dos reais conflitivos problemas do dia-a-dia? Aquela aristocracia de indivíduos de intensa solidão e orgulho, narcisistas imbuídos de certezas inquestionáveis e auto-referenciadas?

Me surpreende Nietzsche ter vivido no auge de um período histórico fermentado por inúmeros levantes de trabalhadores que sacudiam em suas raízes as estruturas seculares da sociedade, se mantendo alheio e tenha manifestado sentimentos de desdém frente a estas lutas. Provavelmente, para Nietzsche, a emergência destas vontades, cá entre nós, realmente combativas, vigorosas, desmedidas, cuja a única culpa era sua origem popular e conotação política, carregou a “ilusão” antinatural de pôr em questão e de romper de fato com toda a concepção plurimilenar da prepotência e obscurantismo aristocrático.

Por fim, para Nietzsche havia uma saída de toda a algazarra revolucionária na Europa, diante da vontade de nivelamento, no seio deste “retrocesso” surgiu o mais prodigioso, o ideal clássico encarnado, o esplendor da grande nobreza, “a terrível e fascinante contra-senha do privilégio dos raros!”; surgiu, então: Napoleão Bonaparte. Significou, para ele, a “síntese de inumano e sobre-humano.”. Um certo retorno à convalescente nobreza européia, a sobrevida dos raros. Entretanto, cá entre nós, Napoleão representou mesmo o antigo ideal? Talvez enquanto indivíduo, porém, ele nunca foi a indicação do outro caminho, através dele o feudalismo nunca retornaria, pelo contrário, ele lacrou seu caixão. Através do código napoleônico, que é sem dúvidas o seu legado, trazia o homem como síntese, como verdadeiro cidadão – não como instrumento. Ele foi a realização da razão; representou no campo político e social exatamente isto, a despeito daquela antiga nobreza e de Nietzsche.

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