Mas, um dia a luz...



Certa vez houve uma circunstância inusitada, tão incrivelmente absurda que nem mesmo ocorrera no tecido sobre o qual a nossa existência se desdobra - não ocorrera exatamente no Universo, mas em uma lacuna entre ele e o desconhecido. Neste não-lugar um bebê nascera do tronco de uma árvore! Era uma árvore imensa, que ocupava um imenso bloco rochoso que flutuava. E neste bloco no qual se encontrava, e que cabia numa pequena fissura no tecido da nossa existência, um bebê chorava à imensa sombra daquela árvore incomum.

 

Esta história começa quando uma cápsula não muito maior do que um carro atravessou a tal fissura como um raio. E ao chocar-se contra a rocha, que flutuava num recôndito não-lugar além de qualquer tempo conhecido, tudo foi tomado por destroços que flutuavam como em um globo de neve iluminado pela explosão da sua chegada. E em meio a todo o caos lá permanecia o bebê intacto e chorando. Daquela cápsula surgiu alguém que veio daqui, da nossa realidade, de quando ela jazia moribunda, não porque algum apocalipse ocorrera, mas era mesmo a nossa última era, de quando o tecido da nossa realidade já não abrigava sequer a sombra da desordem que outrora abrigou. A remanescente chegou até ali movida pela esperança - em busca de uma nova chance para o mundo de onde veio, em busca de futuro, ou de ao menos mais algum suspiro.

 

As últimas luzes que iluminavam os céus estavam se apagando, vivíamos circundando uma estrela fria – uma das poucas que ainda nos vertiam energia. Tudo o que existia no céu não só estava frio, como estava distante. E a remanescente que rasgou a extraordinária fissura partiu em busca de luz, como os antigos navegadores buscavam faróis - buscava energia, como um inseto que busca lâmpadas.

 

Incontáveis eras se passaram antes desta história incomum. Nossos descendentes se especializaram na busca por energia. Mas após tantas e tantas eras o niilismo já predominava no seio da sociedade. Todas as artes, todas as religiões, toda a metafísica havia se tornado peça de museu – nem mesmo os museus existiam, apenas os registros. Apenas existia a imperiosa necessidade de nos reproduzirmos, sem sentido, sem meta, sem objetivo, sem uma razão oculta; tudo porque o tempo havia demonstrado que o conhecimento científico nos bastou para seguir em frente – e nada nos era mais forte do que este instinto. Havíamos criado vida em laboratório – vida a partir de matéria inorgânica; ressuscitamos milhões dos nossos para sabermos o que havia depois; descobrimos vidas em milhares de outros planetas; e embora as artes tenham esvaecido antes das religiões, toda a algazarra humana havia dado lugar a não mais do que códigos.

 

Mas nossos descendentes se especializaram tanto e por tanto tempo na busca por energia que encontraram este farol que iniciou esta história. Havia muita energia reunida ali. Ninguém compreendia ao certo o que estava acontecendo: uma singularidade que lembra uma cicatriz pairava no espaço. E nós enviávamos sondas, que ecoavam informações sobre um imenso bloco rochoso, com uma imensa árvore, no meio, na qual sobre as raízes chorava um bebê, cujos dados sobre o tempo simplesmente não faziam sentido.

 

Tão incrivelmente absurda foi a circunstância, tal qual foi o assombro que houve comoção. E como os nossos ancestrais mais antigos, suspendemos a descrença, o niilismo que imperava em nossa existência. Todo o planejamento, todos os procedimentos que criamos para lidar com o desconhecido, toda a ciência fora suspensa. Suspendemos tanto de tudo, que a nossa aposta foi em um aspecto subjetivo tão fundamental, quanto a nossa reprodução, um aspecto que relegamos a um passado desconhecido: recorremos à Arte. Nossas sondas, nossa física, nossa matemática não explicavam mais – e nem havia tempo para explicar.

 

Diante de um bebê nascido de uma árvore no meio de um não-lugar enviamos... uma mãe. Daí que a nossa protagonista adentrou a tal fissura a partir de uma cápsula enviada reta e direta, com um só propósito: cuidar do lamurioso bebê, nascido de uma árvore no meio do absurdo. Havia algum destino envolvido...

 

Alguns anos se passaram para nós (não naquela fenda, cujo tempo não se poderia medir), e por séculos, enviamos sondas e observamos uma mãe cuidando de um filho, sustentados por uma imensa árvore. Até que de lá uma mensagem chegou:

 

Uma fração de dois...
Você se lembra deste momento?
De quando você era o teu pai e tua mãe?
De quando você era a atração que eles sentiam um pelo outro?
Ninguém recorda desta epopeica jornada
No início, éramos dois pedaços de um todo
Há uma forte razão para o amor
Amamos pouco
Odiamos muitos

Agora, sou o amor
Tudo gira em torno desta adorável maravilha
Não existe mais o “eu quero”
Não existe mais o “eu sou”
Existe o amor apenas
Esta maravilha é uma fração minha
Como é uma fração de toda a existência
Amar a existência: é o meu primeiro mandamento

Um bebê nasceu de uma árvore
E todo o Universo renascerá
Mas não me interessa o infinito
Amei meu filho quando me choquei com este lugar
O amei em meio ao desespero
E o amarei quando tudo voltar a girar
E quando aqui o encontra-lo outra vez

(Continua)

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